Futebol é coisa de quem quiser
Sou completa e loucamente apaixonada por futebol desde que me entendo por gente. O “orgulho do papai”, que sonhava em ter uma menina, mas também queria alguém para acompanha-lo nos jogos de seu time. Aos cinco anos, eu trajava a camisa do meu time ao invés de um vestidinho rosa de lacinhos, mas me sentia igualmente linda. Ou até mais. Minha mãe não concordava muito, no começo relutou, mas o tempo tratou de conforma-la. Meu pai, satisfeito, comprava-me cada vez mais artigos – bandeiras, camisas, chapéus, ursos. Não importa onde estivéssemos, estádio ou sofá, ele fazia questão de cantar comigo o hino para que eu o tivesse sempre na ponta da língua, treinado, como uma professora ensina o “ABC” para seu aluno.
“Pai, por que não foi gol se a bola entrou?”, questionei pela primeira vez, quando realmente comecei a prestar atenção aos detalhes da partida. “Porque ele estava na posição errada, filha, os jogadores precisam estar alinhados assim, tá vendo?”. Aos sete anos eu aprendi o que era um impedimento. Esse homem, que me trouxe ao mundo e me criou, fez-me amar o futebol tanto quanto ele – até mais se duvidar. Ensinou-me nomes de jogadores e suas posições, o que cada um fazia e para que servia, esquemas táticos, regras e tudo que era necessário para eu compreender minha paixão, não só aprecia-la. Falou-me sobre competições e suas importâncias, para que eu pudesse entender o motivo de suas lágrimas ao ver nosso time ser campeão nacional em 2002.
Aos onze, eu podia discutir futebol com qualquer menino da minha rua com propriedade, sem hesitar. Podia, inclusive, deixa-los no chinelo com meus conhecimentos sobre tal esporte. Conhecimentos estes que meu pai me passou, assim como meu avô fez com ele. Preparou-me para torcer, amar, entender e viver de futebol. E eu, como boa filha que sou, não o decepcionei. Fiz uma das escolhas mais importantes da minha vida baseada nesse sentimento que ele me transmitiu: minha profissão.
Mas teve uma coisa para a qual meu pai esqueceu de me preparar: o preconceito, mais conhecido como machismo. Não por mal, longe disso. Ele só não sabia que nem todos pensavam – e agiam – como ele. Isso eu tive que descobrir e enfrentar sozinha, a cada “cala a boca, você é mulher, não sabe nada sobre futebol”. Ou então “só assiste jogo por causa de tal jogador”. Ou a cada vez que escutava a clássica pergunta: “Você pelo menos sabe o que é um impedimento para opinar?” Releva, é só uma brincadeira.
Certa vez, em uma “entrevista de emprego”, ao dizer que sou fissurada por futebol, fui questionada por um jornalista renomado / o bom dos esportes / apoiador das mulheres no jornalismo esportivo se eu sabia quantos jogadores havia em campo. O mesmo que eu vi, inúmeras vezes, falar em rede nacional que as mulheres precisam de mais espaço em tal área do jornalismo. Eu não tive reação. Ele riu e disse “releva, foi só uma brincadeira”. Respirei fundo, levantei e sai. Será mesmo?
Quando ganhei minha coluna em um site de notícias esportivas, ouvi e li diversas pessoas dizerem que “conseguiu só porque é bonita”, sendo que meu último texto havia batido o recorde de visualizações e derrubado o site. Pensei em retrucar, mas ai ouvi o famoso releva, foi só uma brincadeira. Pela milionésima vez. Eu, a essa altura do campeonato, já não conseguia “relevar” tão tranquilamente como antes.