A história brasileira é cheia de golpes, alguns na época do Império e outros já na República. Não foi um, não foram dois, foram vários. Desde golpe para coroar um rei menor de idade até os golpes institucionalizados. E este 1 de abril é mais uma data para relembrar em nossos 520 anos de história desde a chegada dos portugueses, lá em 1500.
O dia de hoje rememora o golpe militar de 1964 que instaurou a ditadura. Essa que durou longos 21 anos e só foi terminar em março de 1985. O presidente derrubado foi João Goulart, legitimamente eleito. O primeiro presidente na redemocratização foi José Sarney.
Vários clubes de futebol, que cumprem um papel importante em diversas lutas e tem grande influência em um país apaixonado por futebol, se calam, salvo algumas exceções como a que citarei logo mais. Parece que aqui nós queremos nos esquecer e fingir que nada aconteceu há 56 anos ou achar que foi uma “revolução”. Diferente de outros exemplos na América do Sul.
Para citar dois exemplos “simples”, falo aqui da Argentina e do Chile. O país portenho conta com o feriado do Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça, que recorda, em todo 24 de março, da Última Ditadura da Argentina (1976-1983). Nesse dia, os clubes cumprem o papel e postam mensagens para que “Nunca Más” o país sofra com regimes não-democráticos.
Já o Chile tem em seu principal estádio, o Estádio Nacional do Chile, em Santiago, um setor para jamais se esquecer do período que durou 17 anos (1973-1990). A ‘salida 8’ foi por onde muitos entraram para nunca mais sair. A cancha foi prisão na época da ditadura e passaram cerca de 40 mil por ali, 400 morreram. Nesse lugar no gigante, há uma mensagem: “un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro” (traduzindo: um povo sem memória é um povo sem futuro), a arquibancada ainda é a mesma e jamais será mudada. Conheça mais sobre o estádio clicando no link abaixo.
Agora, vamos falar de um clube que não se calou na época da ditadura e nem se cala na data que marca o golpe, o Sport Club Corinthians Paulista. À época dos últimos anos do regime, nos proporcionou uma das grandes histórias que mostram a máxima “nunca será só futebol” com a Democracia Corinthiana. O personagem central era o lendário camisa 8 alvinegro, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, mais conhecido como Sócrates e também referido como Doutor Sócrates.
Sócrates com uma mensagem pró-democracia usando a camisa do Corinthians (Reprodução)
Ditadura Militar (1964-1985)
O Brasil vivia uma instabilidade política recorrente em nossa história. Após a morte de Getúlio Vargas, o país tentava ares democráticos, mas isso nem chegou a durar duas décadas. Impulsionado pela Guerra Fria (1945-1989) e a ligação ideológica aos Estados Unidos, os militares assumiram o poder no último dia de março de 1964 e oficializaram no dia seguinte. A motivação principal era a “ameaça comunista” que poderia invadir o Brasil.
Tudo parecia normal apesar da tensão mundial, porém, quando o governo de João Goulart começou a ganhar um caráter mais social, especialmente com a proposta de reforma agrária, foi o momento para os militares derrubarem o poder. E ali se inciavam 21 longos anos de nossa história, o primeiro militar a comandar foi o Marechal Castelo Branco.
O primeiro Ato Institucional, o AI-1, assinado pelos comandantes militares em 9 de abril de 1964, destituiu todo o governo anterior. Disfarçado de revolução, em seu primeiro parágrafo trazia: “O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução”.
O começo do regime pode até não ser considerado uma ditadura propriamente dita. Isso porque ainda não havia muitas manifestações de limitar o direito das pessoas. Mas a partir de 1968, com o Ato Institucional nª 5 (AI-5), tudo mudou. Com o Ato, ficava garantido, conforme o texto do AI-5 “a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais”. Foi o mais duro golpe da ditadura até então.
Confira a íntegra dos dois Atos Institucionais citados nos links abaixo:
Capa de O Estado de São Paulo no dia 14 de dezembro de 1968, um dia após a assinatura do Ato (Aquivo/Estadão)
Os anos de chumbo (1968-1974)
Com o AI-5, os anos de chumbo, que duraram de 1968 até 1974 (fim do governo de Emílio Garrastazu Médici) com a repressão total a quem fosse contra o regime. Ali, vários artistas como Belchior, Raul Seixas, Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Tom Jobim e tantos outros precisavam usar toda a capacidade para “burlar” o regime e conseguir que suas obras tivessem o aval para publicação.
Além da censura a artistas, era óbvio a censura à imprensa. Sem informação, não tinha como o povo duvidar do regime. Somente quem sofria diretamente a repressão é que sabia o que acontecia. A maioria da população não. Então, foram anos com muitas mortes, torturas, sumiços, justificativas de mortes sem nenhum tipo de fundamento. Em suma, o regime estava com o poder ilimitado e fazia o que queria para manter as amarras ideológicas.
Manifestação contra a Ditadura com uma faixa de uma música de Chico Buarque intitulada Apesar de Você (Reprodução)
Década de 1970
A década de 1970 foi a mais sofrida nos tempos da ditadura. Depois da conquista da Copa do Mundo em 70, no México, o futebol tornou-se ainda mais fundamental para manter as amarras. Alguns times daquela época são memoráveis com o Cruzeiro campeão da América, Atlético Mineiro campeão do Brasil, Guarani de Campinas, Internacional bicampeão Brasileiro e tantos outros.
Não há nenhum registro famoso de manifestações contra a ditadura nessa época no cenário futebolístico. Assim, o esporte era político e distraia o povo.
É certo dizer que os regimes militares tiveram seu auge nesse período. Olhando para os vizinhos, a Argentina havia voltado a ser governada por militares em 1976, antes, o Chile e o Uruguai sofreram golpes em 1973. Então, a influência de ideologia era enorme nesta época.
No governo Médici, tivemos o “Milagre Econômico”, onde o Brasil cresceu muito, mas a desigualdade aumentou na mesma proporção. O “Milagre” levou milhões à desnutrição. Para ofuscar isso, a censura impediu que a palavra “fome” aparecesse na mídia. Essa fase de falsa alta na economia durou até 1974.
A partir daí, a ditadura dava alguns sinais de queda, mas ainda durou mais 11 anos. Com o novo presidente General Ernesto Geisel, começou a abertura política enquanto os efeitos do milagre na economia começavam a aparecer. Não demorou muito para outra crise econômica e com ela veio a política.
Em 1979, no dia 13 de março, as manifestações que já começavam a ficar mais fortes chegou em outro estágio. No ABC paulista, a greve dos metalúrgicos era deflagrada. Assim, os sindicatos estavam mais fortes e o regime caminhava para seu fim. No dia seguinte ao início da greve, o último presidente militar assumiu, General João Figueiredo.
Manifestação dos metalúrgicos na região do ABC paulista em 1979 (Reprodução)
Democracia Corinthiana
A Democracia Corinthiana foi, com certeza, o maior movimento democrático presente em um clube de futebol no Brasil. Teve suma importância em uma época que a ditadura dava sinais do fim. Surgiu em 1982, quando o Corinthians mudou seu presidente. Ao assumir, Waldemar Pires foi ousado e trouxe um sociólogo como diretor de futebol, Adílson Monteiro Alves.
Com isso, se rompeu toda uma estrutura formada e o clube estava mais “aberto”. Roupeiros, membros da comissão técnica, lavadeiras e outros mais, além dos próprios jogadores, ganharam espaço na tomada de decisões. Havia várias votações para decidir desde coisa simples até contratações por exemplo. Isso tudo foi possível graças a presença no elenco de alguns jogadores com consciência política. Esse é o caso de Sócrates, Wladimir, Walter Casagrande e Venón.
Sócrates à esquerda, Casagrande ao centro e Wladimir foram responsáveis por articular o movimento (Reprodução/Gazeta)
Na contramão do que a sociedade estava acostumada, os jogadores tinham muita liberdade, tanto que a concentração em dia de jogo foi retirada, os ‘bichos’ (nome dado à premiação por títulos ou objetivos conquistados) passaram a ser divididos entre todos. Sobre o fim da concentração, Sócrates chegou a dizer à época: “quando você está preso, a primeira coisa que você quer é se libertar”.
As ideias ganharam o campo, depois a torcida e as ruas. O Corinthians historicamente é um time do povo, das classes mais pobres e com essas ideias ganhou um papel de destaque. Mas, isso também foi possível graças aos resultados dentro de campo. Na era da Democracia, o time de Sócrates derrotou o São Paulo duas vezes nas finais do Campeonato Paulista de 1982 e 1983.
Surgimento do nome e marca
O movimento não tinha um nome em seu começo, muito menos uma marca. Mesmo que já tivesse grande importância no cenário brasileiro, faltava uma forma de mostrar tudo isso. Assim, em uma palestra em que Sócrates falava sobre as ideias do movimento, o jornalista Juca Kfouri falou sobre democracia e Corinthians. Nisso, o publicitário Washington Olivetto, que trabalhava no clube, teve a sacada de colocar o nome de Democracia Corinthiana.
Além disso, a marca levou a fonte da Coca-Cola no ‘Corinthiana’ e isso trazia um envolvimento muito maior do povo e facilitava o reconhecimento. Outra ideia do publicitário foi a faixa que os jogadores levaram para o campo escrito “ganhar ou perder, mas sempre com democracia”.
Cartaz de divulgação do fillme ‘Ser Campeão é Detalhe'(Divulgação)
Decadência do movimento e do regime
Após os títulos e por alguns problemas internos, a Democracia Corinthiana perdia sua força. Porém, junto com ela, a ditadura também sucumbia. Em 1983, começou no Brasil o movimento conhecido como ‘Diretas Já’, que pedia eleições diretas para presidente. Porém, para que isso acontecesse, era necessário passar a Proposta de Emenda à Constituição nº5 de 2 de maço de 1983, mais conhecida como Emenda Constitucional Dante de Oliveira, proposta pelo deputado de mesmo nome.
A campanha pela aprovação foi enorme com manifestações em todos os cantos do país. Mas a vitória não veio. Como era uma PEC, seria necessário pelo menos 320 votos (dois terços do Congresso), mas foram 298 a favor, 63 contra, 113 ausências e 3 abstenções.
A mobilização popular levou milhares de pessoas aos cerca de 30 comícios organizados em 1983 e 1984 (Reprodução/EBC)
Sócrates havia prometido que se a PEC não fosse aprovada, sairia do país e assim ele fez. Com sua saída e o fim do mandato de Waldemar Pires no Corinthians, a Democracia Corinthiana perdeu sua força. Tudo foi encerrado em 1985, quando Roberto Páscoa, membro da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido que apoiava os militares, assumiu a presidência corintiana.
O fim da ditadura deixou mais de 20 mil torturados e mais de mil mortos, uma hiperinflação, muitas obras paradas e o legado para nunca mais acontecer. Como o último presidente militar, General João Figueiredo, disse em entrevista à Veja em 2002: “Peço ao povo que me esqueça”.
Mas a ditadura não é para ser esquecida. Não podemos simplesmente ignorar a história deste país. Quem finge que não existiu ou cita que foi uma “revolução” é conivente com a destruição da democracia. A luta tem de ser de todos, não importa de qual lado esteja. Defenda a democracia!
Os clubes deveriam fazer como na Argentina e se unir para rememorar dos dias escuros que esta nação viveu. Mas preferem se calar. Por isso, o exemplo do Corinthians deve ser valorizado.
Está na nossa história, é o nosso DNA. O Corinthians é o Time do Povo, e é o povo que construiu o time! Sempre estivemos, estamos e estaremos na luta pela manutenção da democracia no Brasil!
E como está no livro ‘Como as democracias morrem’ de Steven Levitsky, hoje “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos”.