Desde a inesquecível vitória contra o Botafogo e após a confirmação do acesso diante do Mogi Mirim, fiquei pensando se aqueles jovens humildes que se reuniram em três de fevereiro de mil novecentos e catorze, na rua da mangueira, no. 2, distrito da Boa Vista, poderiam imaginar que aquele Clube que acabara de ser fundado, seria dali em diante o retrato fiel da condição social que viviam naquela época, conquistando tudo à custa de muito suor e lágrimas.
Também imaginei se aqueles jovens que eram educados pelos padres salesianos poderiam prever que aquele time, que primeiramente era apelidado “time de meninos,” cem anos depois, passaria a ser aclamado pelas multidões como “time de guerreiros” e que protagonizaria a mais incrível história do futebol brasileiro. Se podiam fazer ideia de que aquele clube passaria por diversas turbulências e momentos de glórias ao longo dos anos, e conquistaria títulos memoráveis e arrastaria multidões incontáveis aonde fosse, ao ponto de em 1975 chegar às semifinais do Campeonato Brasileiro com vitórias expressivas sobre Palmeiras dentro do Parque Antártica e Flamengo em pleno Maracanã.
Mas, como um filme hollywoodiano que se preze, o clube fundado na Igreja de Santa Cruz veio a enfrentar a partir de 2006 a maior crise de sua história, quando, delapidado por administrações desastrosas e sem nenhum comprometimento com o clube, se viu afundado em dividas e sem participar de nenhuma divisão do futebol nacional.
Não se via naquele período até o fim de 2010 uma matéria em jornal e televisão que pudessem lembrar o clube que era conhecido como o “terror do nordeste”, a não ser àquelas que falavam das maiores médias de público e questionavam de onde surgia aquele amor incondicional.
O que antes era um clube respeitado pela sua história e tradição, passou a ser alvo de piadas e frases prontas sem criatividade alguma. Os rivais passaram a rir e debochar do clube e da sua torcida, chegando até fazer apostas sobre quando o Santa Cruz fecharia as portas e entregaria o seu patrimônio conquistado a custa de muito sacrifício nas mãos do poder público.
Mas foi a partir de 2011, sem divisão e com apenas quatro jogadores no plantel, que o time do povo renasceu, quando a massa provou que futebol não era apenas quatro linhas, uma bola e vinte e dois jogadores. Simplesmente a legião de apaixonados botou o clube nos braços e começou a escrever dali em diante a maior história de superação de um clube de futebol.
Dispensando o pedantismo acadêmico, deixo de falar aqui das narrativas dos jogos, dos cinco títulos conquistados em cima dos rivais que gozavam de situação financeira infinitamente superior e dos públicos que superlotaram o Arruda e cotidianamente era manchetes de jornais nacionais e internacionais, pois todo torcedor sabe de cada detalhe que por ventura eu poderia relatar.
Foram nesses sumaríssimos dez anos que passei a entender de verdade o porquê de tanta paixão de uma torcida por um clube de futebol. O Santa Cruz passou a ser mais do que um clube, virou um fenômeno social.
Para mim, alguns fatos marcaram a trajetória de renascimento do Santa Cruz que, sinceramente, toda vez que lembro fico emocionado. São pessoas que se foram, como o querido amigo e inseparável companheiro de jogo Marquinho, que em 2008 faleceu e passou a acompanhar os jogos de lá de cima, bem como os anônimos que ao longo dessa estrada de torcedor de arquibancada eu tive o privilégio de contemplar o amor que eles sentiam pelo clube.
Impossível esquecer o cadeirante, que em pleno domingo, em uma noite chuvosa, aguardava sozinho o ônibus na parada e inesperadamente foi colocado nos braços dos tricolores que desceram do coletivo para apanhá-lo. Só um amor puro e incondicional pode fazer com que uma pessoa com tantas limitações se proponha a pegar um transporte coletivo precário e enfrentar uma multidão para entrar num estádio de futebol apenas para ver seu time em campo.
O pedinte do Mercado de São José, que me abordou, e ao invés de pedir dinheiro para comer perguntou se eu não podia ajudar no ingresso dele.
O torcedor, que pagou promessa no Morro da Conceição, subindo e descendo de joelhos porque o Santa havia conquistado o acesso à série C.
A impagável e ao mesmo tempo sincera oração de Chico da Cobra depois do acesso à série B.
O gasoseiro, que no jogo contra o Atlético de Goiás se irritou com o torcedor porque ele queria comprar água no momento que Daniel Costa estava se preparando para bater a falta.
O até então desconhecido Presidente que tomou posse em 2015, foi chamado por boa parte da torcida de “Delírio” Moraes e mesmo sem receita de nada foi campeão e conquistou o acesso.
O Sr. João Gouveia, torcedor participante assíduo dos programas radiofônicos, que após a vitória contra o Botafogo ligou para a rádio relatando que havia se sentido mal na sexta, fora internado no sábado e se emocionou com a vitória do Mais Querido acompanhada do quarto do hospital, pedindo a Deus apenas que se pretendesse levá-lo que o fizesse apenas depois do acesso.
Os olhos de espanto da minha amada companheira ao ver pela primeira vez o Arruda lotado no jogo do acesso na série D, e nossa caminhada triunfal durante toda a estrada rumo à série A.
Não tenho dúvidas que cada torcedor tem seu depoimento e que se eu fosse contar as situações especiais que eu vivi, especialmente nessa odisseia 2011 até o acesso de 2015, esse simplório artigo seria mais extenso do que o necessário.
Explicar o que cada torcedor do Santa Cruz Futebol Clube sentiu ao apito final é uma tarefa impossível, mas a lição dada por esse fenômeno social deve ser levada em nossos corações. Tudo que se faz com amor e esforço é recompensado no fim. Por maiores que sejam os desafios.
Não foi só gol, bola na rede e apito final.
Foi amor, devoção e entrega. Todos devem se ajoelhar ao Santa Cruz.
Cada um de nós, que ajudou a reconstruir o clube e o amou incondicionalmente, hoje deve sentir o mesmo que os humildes jovens sentiram em 03 de fevereiro de 1914. Faríamos tudo outra vez.
“O Santa Cruz nasceu e vai viver eternamente”.
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