Vila Nova

15/03/2018

15/03. Data em que o Brasil passou a se chamar República Federativa do Brasil. Data em que findou o Regime Militar brasileiro. Data em que começou a guerra civil na Síria. Uma data de enorme peso histórico, perfeita para sustentar a tragédia de 15/03/2018. A data em que o Vila Nova parou Goiânia, mas parou junto, na terceira fase da Copa do Brasil.

15/03/2018 foi um daqueles dias injustos do futebol. Algo além da compreensão de qualquer âmbito racional. Não há nada na filosofia, na ciência, na teologia ou no mundo jurídico capaz de explicar o que aconteceu no Serra Dourada nesta nefasta quinta feira. Caso exista um Deus do futebol, suponho-o terrível.

Na realidade, 15/03/2018 começou no dia 14/03/2018. Até as 20:00, mais de 10.000 ingressos vendidos antecipadamente. Ao meio dia, no dia da tragédia, saiu uma nova parcial: 15.000 ingressos vendidos. Faltando oito horas e meia para o jogo. Os ingressos não pararam de vender até a bilheteria fechar. Durante o primeiro tempo ainda se via muita gente chegando.

O ônibus chegou às 19h no Serra Dourada. A torcida lhe recebeu como se neste residia o fim de todas as intempéries do mundo. E de fato residia ali as únicas pessoas no mundo capazes de trazer uma alegria que transcende a compreensão humana. Uma alegria que espanta amigos e parentes, incapazes de segurar sua indagação. A resposta é sempre a mesma: o Vila não se explica, se ama.

O ônibus penetra o templo de concreto, de onde soerguem mãos, bandeiras, sinalizadores e foguetes. Em uma onda, faz-se luz. Mãos outrora balançando agora estão ofuscadas com um brilho vermelho e branco, piscando incessantemente, sinalizando a entrada no inferno colorado. Em 7 dias Deus fez o mundo, e em 7 minutos a torcida colocou todo seu mundo ali, naquele emplastro de fogo.  Junto com a luz, fumaça. Em um meio homogeneamente vermelho, cor que da vida ao manto, os jogadores e o condutor não conseguem ver nada. É a intenção.  Eles não têm de ver nada. Devem apenas ouvir a exortação daquela nuvem vermelha, orando religiosamente, pedindo nada além do sangue, suor e a vida da população do ônibus, minúsculo entre tanta gente e pirotecnia. O ônibus supera o corredor e entra no estádio empurrado pelas 30.000 pessoas que entravam junto.

15/03/2018, quando o Serra Dourada recebeu 30.000 pessoas pela primeira vez em 3 anos. Em plena quinta-feira. A última vez foi feito da massa colorada também. E como é lindo um estádio lotado, ainda mais um estádio lotado em jogo do Vila. Nem o crivo de Michelangelo, da Vinci e Picasso seria capaz de pintar a bancada de forma mais bonita. O funcionário público, seu salário de fome;  o operário que esmerila seu dia de aço. Nenhum cabe na poesia, mas cabe no Serra Dourada.  Lá cabe todo mundo, toda a espécie  humana e suas infinitas variedades estava ali, buscando a alegria na abstração de uma vitória.  O povo uniformizado sob faixas, mastros e bandeirões (dois). A aglomeração é inevitável. Aos poucos, grupos de mais de duas pessoas sequer conseguem se sentar juntas.  Nos bares já se puxa gritos de guerra, transformando até mesmo o ínfimo ato de pegar uma cerveja em algo lúdico, fanático, até poético.  A bateria não para um segundo, a cada golpe um apaixonado desavisado tem seu coração sincronizado e a partir dali perde o livre arbítrio; a essência passa a preceder a existência e a única ação possível é pular e gritar até o fim do jogo. Os mastros rasgam o ar mostrando sua imponência. Vai chegando mais gente: o Oliveira, que viu o gol de Roberto na conquista do tetra, se acomoda. O Andrade, que perdeu o gol salvador do Max Pardalzinho porque foi comprar cerveja, vai no bar do Gaúcho comprar uma gelada (agora sempre antes do jogo).  O Mauro, que saiu do estádio no primeiro tempo do 5×3, já entra com o coração pulando em nostalgia. E assim vai. Muita gente chegando, e todos preparados para a entrada do time.

Os bandeirões estão a postos. Os sinalizadores aguardando a faísca. As camisas, preparadas para serem balançadas. A arquibancada, pronta para tremer. O torcedor, pronto para fazer o que lhe da mais prazer: apoiar o Vila Nova. Quem não torce pro Vila, completamente desperado para o que está por vir, além de ainda estar chocado com o corredor de fogo das 19. Eis que entram os 11 jogadores vestindo a sagrada peita. A arquibancada entra na iminência de volatilizar-se com os gritos desumanos e os pulos incessantes.  O sinalizador queima uma última vez, sua fumaça abraça a torcida. Os mastros se abaixam, hora de subir os dois bandeirões. Três torcedores, um segurando o meio e os outros dois em cada ponta, correm a arquibancada coordenando a subida da mais bela das cortinas. O bandeirão, apesar de enfeitar a arquibancada, é mais uma cortina. Enquanto ele balança, os torcedores passam a assoviar e bater palmas sincronizadamente, num mesmo ritmo, que aumenta gradualmente. Quando a frequência está insuportável, o bandeirão desce e descobre a mais apaixonada das nações. Esta, em uma só voz, declara seu amor e empurra o time. A bateria, o chão da arquibancada e o ar não param de apanhar uma só vez, seja de baquetas, pés ou punhos, ninguém fica parado e ninguém está dentro de si. Todos completamente hipnotizados e absortos em um objetivo: ajudar de toda forma possível a vitória da maior paixão de todo mundo ali.

O Tigre chega no gol adversário com perigo três vezes, e a arquibancada não cessa a festa. Até que surge uma falta. Da falta um gol. E quem dera fosse do time de vermelho. Serra Dourada não teria estrutura para a comemoração. “Do sorriso fez-se o pranto, dos olhos desfez a última chama”. Como foi duro esse gol. Um pesadelo. Após o golpe a torcida se levanta e continua torcendo, já viu situações piores e há de seguir aquela máxima: se for lutar, que seja até a morte. Se for para morrer, que seja por amor. E se for amor, que seja pelo Vila. Mas a partida foi passando e a bola não entrava, tampouco corria o risco de entrar. Não fazia sentido. Obedecendo às leis da natureza, a sensação foi de que o resto do jogo demorou cinco minutos.

Quando o juiz colocou uma mão no apito, ergueu para o céu a outra e o banco do Ferroviário foi para o campo comemorar, era nítida a tragédia. O rosto de todos que saíram de seus trabalhos, deixaram suas famílias ou as levaram, desolado, sem entender, completamente atônito. Talvez a genealogia da palavra justiça revele-a como uma construção humana, algo que não existe, impalpável. Agora, mais de 30.000 pessoas teriam de voltar para sua vida estranha ao clube que  tanto lhes inspirou amor. E cá está, um homem devastado, relembrando o dia 15/03/2018. O computador lhe pedindo inspiração e ele em vão, lutando contra a tristeza inconsolável, só consegue escrever uma frase:

Vila que segue.

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